terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Embate

Sempre desejamos ver o Brasil no rol dos principais países do mundo, mas provavelmente procurávamos o bônus, sem nunca pensar no ônus. E que ônus...

Desde do começo do século XXI as guerras religiosas vêm imperando, periodicamente eclodindo, pequenos eventos de grandes proporções. Nunca mais vimos uma guerra mundial, deflagrada em todos os cantos, mas em todos os cantos o conflito ideológico é constante.

Ao Brasil coube contribuir com a manutenção da paz mundial, seja lá o que isso significasse aos poderosos do mundo. Passamos a intervir e participar ativamente nestes conflitos, aliados que somos do grande conselho humano.

Da minha parte eu vivia sossegado, já me considerava longe da idade de convocação. Quase cinco décadas deste século, eu já com a minha quarta década completada, estava muito distante do perfil de um cadete. Ledo engano...

A evolução tecnológica transformou nossos combates e, sendo assim, minha senioridade em engenharia de software era de grande valia. Pior para mim, já que a melhor alternativa é levar a campo os cientistas computacionais para manter ativa a gigantesca máquina tecnológica de batalha.

Tudo é software e rede, executado por máquinas combatentes, com mais ou menos inteligência, a subjugar exércitos de carne e osso, sem os recursos necessários para fazer frente ao dinheiro das Nações Unidas, a não ser por sua coragem e desprendimento ou, na opinião de alguns, loucura mítica.

Meu consolo é estar voltando, após longos quatro anos no front. Normalmente somos levados por não mais que dois anos, mas sabemos como são persistentes esses ideólogos terroristas. Entre uma dificuldade e outra, entre um novo desafio a solucionar e outro, minha dispensa foi sendo adiada. Agora definitivamente acabou, ao menos para mim.



É estranho chegar em casa depois de tanto tempo. Sem contato com minha família, por questões de segurança. Tanta tecnologia maravilhosa e a única garantia de segurança total é a ausência dessa mesma maravilha.

Vivi nos últimos anos um mundo com acesso aos mais recentes recursos computacionais existentes, mas não podia sequer envia um e-mail à minha mãe. Mesmo a minha volta é desconhecida por ela, afinal nada é comunicado ao mundo civil.

Não reconheço o porteiro do prédio, deve ter sido trocado neste tempo... Por sorte algumas coisas nunca mudam, caminho como íntimo do local, avanço para o portão e ele se abre. A velha maneira de distinguir os moradores dos estranhos através do comportamento.

Chegando à porta a expectativa é grande, mal consigo acertar a chave. Para piorar, ela não vira, parece ter tido o segredo trocado. Toco a campanhia. Que remédio, não? Antes não tivesse tocado, ou nem tivesse chegado até aqui. Quem abre é uma pessoa totalmente estranha, assim como eu também o sou para ela.

Confiro o andar, a porta, penso até na cidade, o país, mas tudo confere. É daqueles momentos que nos fazem questionar a própria sanidade... Conferências feitas, tudo confirmado, resta-nos apenas o questionamento.



- Desculpe-me, mas não mora aqui a Sra. Maria Moreira?

- Caro rapaz, sou a moradora e não conheço essa senhora.

- Há quanto tempo a senhora reside neste apartamento?

- Já vivo aqui há dois anos, desde que meu marido faleceu.

- A senhora comprou ou alugou de quem?

- Comprei-o do governo, meu filho, num programa de moradia para a terceira idade. Por sinal, quando cheguei havia uma misteriosa correspondência na portaria, endereçada a Eduardo Moreira. Seria você?



Desci à portaria, depois de me despedir e desculpar a tal senhora. Sentia-me como um personagem de tragédia grega, com os deuses a brincar com essa pequenina formiguinha. Quem sabe o desconhecido porteiro conhecia algo para me alentar...

Identidades apresentadas, ele me entregou a tal carta, por sinal com marcas do tempo que já se passara. Quem diria, num mundo de mensagens digitais, instantâneas ou não, totalmente conectado, eu ainda recebo mensagens em papel e envelope.

O fatídico objeto tinha logo do governo e era endereçado a mim. Se foram eles mesmos que me mandaram para outro canto do mundo, por que não me localizaram lá? Falta de controle, organização ou excesso de segurança?

A carta dizia que minha mãe sofrera distúrbios mentais, não tinha mais condições de ficar sozinha. O serviço social tomou conta dela, liquidou seus bens e a instalou em uma clínica para tratamento de idosos senis. Endereço informado, imediatamente me dirigi para lá.



Ficava a tal clínica em São Paulo mesmo, na região de Higienópolis. Espero que o governo tenha gerido muito bem os recursos da minha mãe, afinal os custos de um internação para aqueles lados devem ser bem altos.

Cheguei ao local angustiado, ansioso por saber o que exatamente se passava. Não bastasse o peso dos acontecimentos da guerra, eu começava a perceber que suas consequências não ficariam apenas por aquelas terras distantes.

Encontrei o local, reluzente, um prédio suntuoso, destes das propagandas para aposentados endinheirados. Caminhei até a recepção e fui direcionado à seção de visitas de familiares.

Aguardei alguns minutos, sentidos como a eternidade, até ser chamado por uma simpática atendente. Fui informado que eu havia sido considerado morto em guerra e minha mãe acolhida ali sob os cuidados do governo.

Se fui considerado morto, por que diabos havia sido deixada uma correspondência endereçada a mim? Ás vezes são tantas as trapalhadas governamentais que me questiono como conseguimos chegar ao estado atual.

Felizmente meu chip de identificação e a rápida assinatura genética não deixaram dúvidas sobre minha identidade. Só lhes restavam permitir que eu encontrasse minha progenitora. Assim foi feito. Fui levado para as áreas internas da instituição.



Era um jardim como dos filmes, muito bonito e aconchegante, um tanto bucólico, mas um com uma paz incontestável. Senhores e senhoras aqui e ali, em conversas calmas e felizes, um verdadeiro éden da idade avançada.

Em meio a tantas cabecinhas brancas, pude reconhecer seus traços envelhecidos. O olhar um tanto aéreo, mas o mesmo sorriso inesquecivelmente gentil. Ao seu lado, alguém mais jovem com quem conversava. Certamente não era um paciente, mas uma visita também.

Ao me aproximar mais, notei certa familiaridade com os traços daquele acompanhante. Essas coisas de traços da família, desenho da cabeça, contornos dos cabelos. Era comum, ao encontrarmos alguém assim, dizermos: deve ser um Moreira. Seria algum primo?

Saudei-os ao longe e, no momento que aquele homem se virou, fiquei atônito! Era eu! Alguns poucos anos mais jovem, eu podia reconhecer, mas era como vivenciar a fábula de Scrooge, ou algo parecido. Ele me parecia um tanto surpreso também e minha falta de ação fez com que ele se dirigisse até mim.



- Quem, quem é você? - primeiro ato meu, como se eu tivesse algum controle.

- Unidade de cuidados e acompanhamento EM01, senhor.

- O que você é ou faz aqui?

- Fui encarregado pelo governo para tomar conta de sua mãe. Posso reconhecê-lo, afinal sua pessoa foi a matriz para minha geração.

- Como assim?

- Quando a demência atingiu sua mãe, ela apenas parecia se referir a você. Perceberam que você seria a única pessoa capaz de conduzi-la e cuidá-la. A opção mais humana era mantê-la em contato com seu filho.

- Mas você não sou eu, não é o filho dela. É um autômato feito minha imagem e semelhança para enganá-la.

- Senhor, desculpe, mas no estado mental dela eu sou tudo que precisou nestes últimos anos. Posso garantir que vive feliz e atendida, como qualquer pessoa poderia desejar.

- Você não entendeu. Eu não quero minha mãe pajeada por um monte de porcas e parafusos, sem ofensas. Minha ausência foi certamente um grande prejuízo para ela, mas tenho condições e quero recuperar tudo que puder.

- O senhor não me ofende, mas posso garantir que fui programado e poderei garantir toda a atenção necessária até seus últimos dias.

- Isso é um absurdo!

- Meu filho, quem é esse rapaz com você? - era ela inquieta por nos ver em acalorada conversa.

Sai, deixando-a com ele, mas seria por pouco tempo. A administração daria conta de resolver essa questão absurda. No caminho pelo jardim, tive a estranha sensação que ele me seguia com o olhar.



- Gostaria de falar com o médico responsável.

- Pois não, senhor, chamarei o Dr. Cardoso agora mesmo.

Não tinha dúvidas de que eu tinha meus direitos e eles eram irrevogáveis. Seja lá qual for a confusão, com essa história de morte minha, ou qualquer outra que possa surgir. É muita desinformação numa sociedade há tantas décadas dita “da informação”.

- Pois não, o senhor é Eduardo Moreira, certo?

- Sim, gostaria de resolver um problema, uma verdadeira confusão, que considero inadmissível.

- Claro, entendo perfeitamente e já tenho o assunto adiantado. Fui informado da sua chegada e pretendia minimizar o transtorno, mas o senhor foi rapidamente levado ao encontro de sua mãe.

- Esqueça os rodeios. Quero levar minha mãe para casa e quero ela distante daquela aberração.

- Ah! A unidade de cuidados. Mas o senhor deveria ficar com ela. Essas unidades, tecnologia recentemente desenvolvida, são criadas para nunca mais serem dissociadas de seus humanos.

- Não me interessa quando foram desenvolvidas, nem suas diretrizes, simplesmente não quero aquele fantasma a nossa volta.

- Infelizmente a única solução é desativá-la totalmente.

- Então o faça!

- O senhor é quem manda, apenas será um desperdício de dinheiro e tempo. Muito do senhor foi colocado naquela unidade, de características físicas a memórias. Um desperdício...



Fomos em um grupo: o diretor-médico, um enfermeiro e eu. Na verdade, o enfermeiro era mais um técnico de hardware do que um profissional da saúde. Ele controlava os códigos de manutenção daqueles robôs.

Ao nos aproximarmos dos dois, subitamente minha versão robótica se levantou de maneira tempestuosa. Olhou-nos espantado, correu em disparada pelo jardim e, num salto mais que olímpico, sobrepujou o muro da instituição.

Corri em direção a minha mãe, para acudi-la, enquanto ouvia o diretor demandar uma série de ordens e alertas. Parecia que eles também foram surpreendidos por aquela reação, tanto quanto eu.

O ocorrido sugeria que ele havia pressentido nosso intuito. Eu não imaginava que estes cuidados básicos, de controles e reação destas máquinas, não haviam sido tomados por seus criadores. Imagina se nossas máquinas guerreiras pudessem também se descontrolar assim. Isso estava me cheirando a mais descuidos do nosso governo...



- Mãe?

- Meu filho? Que estranho, parece que você foi numa direção e voltou noutra.

- Está tudo bem, não sai daqui.

- Curioso, há algo diferente em você.

- Impressão sua, deve ser a luz de hoje.

- Com certeza. Já não tenho mais a mesma cabeça de antes. Se não fosse você comigo...

- Em breve, vou levá-la para casa, para cuidar melhor da senhora.

- Casa? Outra? Você sempre me cuidou tão bem aqui. Se não fosse você...

- Iremos para um lugar melhor ainda, então.

- Ah, meu filho, só você mesmo para estar sempre ao meu lado, cuidando de mim durante todos esses meus anos de invalidez. É por isso que te amo.

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