sábado, 26 de maio de 2012

Desajuste

Como conciliar um cotidiano atribulado e sacrificante com realização e motivação para seguir? A rotina diária de transporte público, com muito aperto e longo tempo, consome paulatinamente um pouquinho da alma por vez.

Nem adianta esperarmos o espírito colaborativo, do tipo “unidos na desgraça”, porque me parece utópico quando nos confrontamos com o comportamento da grande maioria. No meu caso, o desafio inexpugnável de todas as manhãs e finais de tarde atende pelo nome de Metrô de São Paulo.

Num arranjo desafiador, de corpos mais do que intimamente aglutinados, temos nossa paciência e educação rotineiramente desafiada. Permanece a impressão de inexistência da contrapartida, de que apenas nós a possuímos e nos dedicamos a usá-la. Surpreende a normalidade na qual a maioria entre no barco, nesse caso no trem, se engaja e adequa às atitudes do status quo.

Minha reflexão termina por concluir no meu desajuste: em meio a tanto fluxo contrário, a tanto esforço para o outro lado, o problema deve ser comigo, eu devo ser o desajustado, com alguma utopia inocente e irrelevante a corromper meu senso de realidade.



Hoje, logo cedo, dia frio e nublado, para combinar com via crucis do caminho até o trabalho, os ares matinais insinuavam não ser um bom dia para sair da cama. Enfrentar o vento cortante e gelado, mesmo que por algumas poucas quadras, testa nossa resistência e força de vontade.

Se ao entrar na estação do Metrô tudo ficasse para trás, estaria muito bom, mas essa não era a cereja do bolo... Depois de inúmeras composições passarem, consegui entrar num pequenino espaço disponível em uma, feliz por alguns centímetros quadrados de conforto.

Sina das sinas, ao toque da campanhia, um intrépido e grosseiro apressadinho se enfiou porta adentro, espremendo todos e todas, fazendo minha cabeça pender de um jeito inimaginável para comportar a entrada do indivíduo no vagão.

Fiquei lá, torto, contorcionista, e meu companheiro de viagem, braço estendido por sobre o povo, como se procedesse da forma mais humana e natural possível. Uma, duas, outra estação e a empáfia do passageiro me causava tamanha revolta que comecei a temer pelos meus atos.



Chegada a estação Sé, estava eu chegando aos meus limites. Nunca fiz, nem faria, confusão alguma, como bom paulistano prefiro seguir meu caminho, desviar dos acidentes e chegar o quanto antes aos meus compromissos.

Naquele dia tudo seria diferente... Mal as portas abriram, o sujeito olhou em minha direção, mudou a expressão e esbravejou:

- Qual o problema?

Respondi, aos berros, sem medir muito as consequências:

- O problema é sua empáfia, sua falta de qualquer indício de altruísmo!

- Empáfia? Altruísmo? ‘Cê é lôco, mano?

Tomado por instantânea sanidade, resolvi deixar passar, mas não sem antes encerrar com alguma máxima:

- A loucura é dádiva para poucos escolhidos! Ignorar é uma...

- Benção? Empá... Empá... Emmn-n… A-a-alt.. Altrrrrruuuuu... A... a... a...



Inesperadamente o cara começou a engasgar, como uma gravação com problemas, num tom estranhíssimo, metálico, meio mecânico. Assustado, me preocupei com a situação do meu interlocutor. O estresse urbano pode causar sérios danos em qualquer um e eu não desejava ser o motivo de uma crise.

Estiquei o braço para acudi-lo e toquei-o no ombro, perguntando se tudo estava bem. Inesperadamente ele estava catatônico, imóvel em sua postura agressiva, com meia palavra a caminho. Ao encostar nele algo se moveu, como uma peça a se desencaixar, e caiu pelo chão com um estridente barulho.

Aturdido, burburinho em volta de nós, mal percebi quando diversos seguranças do Metrô surgiram e acudiram o homem. Uma maca foi providenciada e, antes que pudesse me pronunciar, ele era removido apressadamente, enquanto o tumulto era dispersado, tudo em nome do bom funcionamento do sistema metroviário.

O mais estranho foi eu ter sido completamente esquecido, nem inquirido sobre a ocorrência. Com em qualquer confusão do tipo, num piscar de olhos todos andavam no seu ritmo frenético novamente, acabou a atração e somente eu continuava pensativo, atônito com a repentina disrupção da minha realidade.

Aquela imagem, a tal peça deslocada, os sons vindos da garganta daquele homem, martelavam meus pensamentos, persistiam e incomodavam, apesar da volta à normalidade de todo entorno.



Cheguei à empresa e não pude deixar de relatar o ocorrido. Melhor seria se tivesse ficado calado... Aparentados aos meus companheiros de viagem matutina, meus companheiros de trabalho atendiam ao perfil de incompreensão padrão das pessoas.

Virei piada com minhas afirmações incontestáveis da minha visão. De suspeitas a insinuações, ouvi um pouco de tudo, levando-me a suspeitar seriamente da minha sanidade. Não fosse a palpável realidade experimentada, eu concordaria que aquela pessoa era um ser humano comum, mas algo pairava de muito estranho no ar.

Revisei os fatos, avaliei meus sentimentos, porém meu incômodo só aumentava. Nada de notícias na Internet, ou no site da companhia de trens, nenhum indício de que eu vivenciara a bizarra situação. Também pudera, quem sou eu para virar notícia por algo corriqueiro e banal no tumulto diário de uma grande cidade?

Encanado como sou, a pressão mental foi enorme e insistente o suficiente para me incapacitar ao trabalho naquele instante. Duas horas depois não aguentava mais, decidi voltar para casa, descansar, tentar esquecer. O estresse urbano acabara de produzir nova vítima indefesa.



Retornei para minha casa, meu porto seguro, mas passar o dia sozinho pode enlouquecer alguém. Remoí cada detalhe do evento, recordava o som da peça batendo no chão. Mas que peça? Como alguém tem uma peça? Qual a origem da voz estranha, da disfluência verbal? Acaso ele seria alguém com implante, com alguma deficiência?

Cheguei a considerar alguma brincadeira de deuses, no estilo grego mesmo, apesar de nunca julgá-los muito verossímeis. De repente é assim, recebemos a revelação de nossa condição e encaremos nossas não crenças serem derrubadas, todas de uma vez.

Preocupei-me com minhas reações e com meus instintos. E se a loucura me abatesse e eu fosse levado a tentar contra mim mesmo? Acreditava piamente no sentido de auto-preservação, mas meus dogmas estavam me servindo pouco até aquele momento.

Procurei dormir, esperar nos braços de Orfeu pela chegada da minha esposa. Talvez uma conversa com ela, pessoa centrada, pudesse colocar novamente meus pés no chão, ajudar-me num rumo para o entendimento, ou ao menos para o apaziguamento da minha inconstância.



Horas longas se passaram, um sono inquieto, até eu poder ouvir o barulho das chaves na porta. Alívio e anseio pelo final da espera, afinal chegava a hora de encontrar alguma compreensão, no mínimo um afago consolador.

Cumprimentos rápidos, um olhar de espanto pela minha presença antecipada, e comecei a desaguar um relato quase alucinado dos eventos. Estática, ela me ouviu atentamente, com algumas poucas expressões de interlocução.

- Você não deveria se preocupar tanto com as coisas, encanar menos.

- Se fosse tão fácil, eu ainda estaria trabalhando.

- Fico realmente preocupada com suas menções e questionamentos relativos à sua auto-preservação... Onde já se viu isso? Seus desajustes com o cotidiano, seu descontentamento com a realidade, acho que poderia procurar ajuda.

- Sinceramente, pela primeira vez considero seriamente sua sugestão de terapia. A psicóloga, sua conhecida, será que pode me atender emergencialmente?

- Não custa procurá-la, tenho liberdade para ligar e marcar alguma coisa...

- O quanto antes, não sei o quanto aguento da minha ansiedade!



No dia seguinte, consulta marcada na noite anterior, fui ao endereço da tal profissional. Poderia ser bom, poderia valer para tantas outras angústias diárias... Tanta gente faz...

Cheguei ao local, dirigi-me a recepção e estranhei a reação da secretária quando me identifiquei. Um misto de prontidão e espanto com a minha presença. Tínhamos marcado com a psicóloga diretamente, mas parecia que a auxiliar conhecia todo o histórico, todo o ocorrido, além do meu perfil. Eu devia estar meio abalado mesmo...

Esperar na sala, mesmo por alguns rapidíssimos instantes, trouxe um pouco do bolo na garganta do dia anterior. Silêncio forçado, TV muda em algum programa de variedades matinal, expectativa alta além de padrões suportáveis.

A porta do consultório se abriu e presenciei a cena de certo encerramento forçado. Sugeria que minha visita havia forçado seu término prematuro. Fui convidado a entrar e me sentar.



Decoração aconchegante, ambiente calmo e envolvente, já me senti melhor somente de entrar e sentar.

- Bom dia! Sou a Marisa, psicóloga amiga de sua esposa. Dias tensos, não?

- Pois é, já adiantamos algo por telefone, só que a bastante por relatar ainda...

E fui destilando os detalhes daquelas pouco mais de 24 horas anteriores, com todos as nuances e reflexões anteriores. Não pude deixar de mencionar meus temores com a loucura, sentimentos de preservação, ou não, relações pessoais com a massa, etc.

Ela ouviu atentamente e solenemente se pronunciou:

- Bem, acho que não há muitas alternativas. Chegamos a um limite de condições.

- Como? Você pretende piorar minha situação?

- Calma, você logo entenderá. Acompanhe-me, por favor.



Ao toque de um botão na sua mesa, uma porta oculta se abriu, estava dissimulada pela estante de livros. Uma luz branca, bem fria, vazava lá de dentro. A psicóloga se encaminhou para tal passagem, me convidando a segui-la.

Não imaginava o mundo oculto atrás daquela porta. Laboratórios dignos de filmes, com pessoas e mais pessoas trabalhando, todos com ares científicos. Fiquei a pensar como não percebi as dimensões do lugar quando cheguei. Na verdade, acho que era imperceptível, feito para não aparentar seu interior.

Tal complexo de salas se estendia por um bom espaço. Por onde passávamos percebia o olhar de curiosidade sobre mim, um tanto similares ao da secretária lá na recepção. Alguns cochichos também podiam ser percebidos, quando o som de nossos passos permitia.

Paramos em um recinto ao fundo, com ares de sala de reunião. Minha anfitriã posicionou alguns aparelhos, projetores à primeira vista, e pediu que eu acompanhasse atentamente.



Imagem no painel, sozinho na sala, permanecia ali, pois sentia ser a única alternativa. Surge um rosto de um senhor grisalho, roupas alvíssimas, como das pessoas naquele lugar. E o mundo deu sua guinada:

- Olá SH327! Bem-vindo ao Complexo Recriação!

(SH327? Eu? Será isso mesmo?)

- Certamente você está se perguntando dos motivos, da sua identidade, dentre outras tantas questões...

- Seremos breves, com o máximo de informação necessária e você terá posteriormente todo o atendimento que desejar. Há muito a humanidade sofreu o ataque de uma pandemia inexplicável. Não sabemos se consequência da ação do homem, ou ira divina, mas poucos restaram.

- Aqueles poucos tentaram resgatar a espécie humana, mas também foram se extinguindo, um a um. Num último esforço, este projeto foi recriado para tentar manter a existência do ser humano.

- Com toda tecnologia existente em seu tempo, criaram e programaram autômatos responsáveis por dar continuidade à suas pesquisas, na busca de um DNA imune. Sou parte destes autômatos e posso lhe garantir que tivemos sucesso nessa empreitada.

- Porém, os indivíduos criados desse modo apresentaram problemas de adaptação à realidade solitária existente. Acabavam extintos ou se auto-extinguindo, fazendo-nos procurar uma alternativa.

- Decidimos construir um ambiente aprazível que permitisse sua continuidade, simulado com outros tantos autômatos na mais perfeita reprodução da civilização humana. Você é o primeiro, e único, a chegar até aos 30 anos ileso neste novo ambiente, mas alguma evento deve tê-lo trazido aqui.

- Havíamos preparado este último subterfúgio para tentar acudi-lo e garantir a continuidade do nosso projeto. Tentar contornar e reprojetar, se necessário...



Decidi não esperar o fim das explicações. Ninguém também tentou me impedir de deixar o local. As revelações até o momento foram suficientes para aplacar minhas angústias, por incrível que pareça. Em poucos instantes, reviravoltas mil, mas reinou uma paz repentina com a consciência da verdade.

Caminhei para casa sem muito pensar, até satisfeito e cheio de planos. O mundo parecia bem igual, apesar de eu conhecer seus meandros, um pouco mais de seus segredos. Deus definitivamente não estava apenas brincando.

Estranhamente sentia-me agraciado com tanto destinado exclusivamente para mim. É bem certo que poderia ter alguns pedidos atendidos, porém resolvi não arriscar... Vai que alguém ficasse desagradado e resolvesse encerrar alguma outra coisa.

Cumprimentei balconistas, atendentes, porteiros e nada havia mudado. Nem tinha a sensação de algum olhar estranho ou oculto. O céu ganhará um azul inesquecível e dormi como nunca naquela noite.



Outra manhã começara, os desafios estavam lá, os apertos os mesmos, a labuta a me esperar. No entanto, o inverno já nem incomodava. A curiosidade de como tudo aquilo era possível se mostrava mais incômoda, mas eu podia conviver com ela, sem precisar resolvê-la.

Cheguei à estação para encontrá-la daquele jeito, abarrotada, como toda dia da semana, em pleno pico. Ao menos poderia receber um bônus, uma folguinha de vez em quando, para facilitar as coisas. Fazer o quê, né? Deve ter que ser assim, para minha continuidade.

Malditos robôs!