domingo, 21 de fevereiro de 2010

Elogio

Tão humanos e tão distintos!

A diversidade humana, em corpo e alma, é uma benção impagável, capaz de nos tornar o grande organismo sobrevivente no planeta.

Por outro lado, provoca antagonismos tão reluzentes que espanta serem feitos da mesma essência, dos mesmos recursos em suas múltiplas variações.

Recentemente li "Como falar de livros que não lemos", de Pierre Bayard. Atraíram-me as sinopses e resenhas, e o desejo de constatar algo tão paradoxal, verdadeira singularidade no conhecimento homo sapiens.

Como é possível o citado ato? Moeda sem circular, não é moeda. Selo não postado, não é selo, deixa de sê-lo. Livro não lido jamais será lido.

Certamente, após termos contato com todas as suas linhas, percebemos do autor certo ranço, mas direcionado ao alvo errado. Seu problema não é com a leitura, mas com o valor inconsistente dado ao seu papel, principalmente em meios acadêmicos.

A velha história de tentar arrotar todo seu arcabouço, sua bagagem leitoral, para soterrados em citações e sapiências se destacar, ser visto como superior, ser aceito. Ele pretende mostrar uma forma de trapacear neste dito mar de mal versados valores, um meio onde impera a superficialidade.

Foi inevitável lembrar do "Elogio da leitura", de Gabriel Perissé. Magistral contraponto para defender o maltratado prazer das letras. Lembrar foi pouco... Precisei comprá-lo e lê-lo avidamente, mais precisamente, degustá-lo.

Vivemos lá a admiração pela prazer da leitura, em prosa e verso, e sobretudo o verso, mesmo que proseado, deslumbrante harmonia de ritmo e beleza das palavras. Transformação da vida com o traçar das ideias impressas, por criar a partir do doce colecionar de horas de tradução dos símbolos linguísticos, gramáticos, ortográficos.

Registrei minhas impressões no Skoob (aliás um recurso muito bacana de conhecer). Dos históricos de leitura mais deliciosos de fazer. Sugeri até como leitura obrigatória (obrigatoriedade do amado) para todos os participantes do site.

O amor que escorre de suas páginas cura qualquer opinião equivocada com qualquer mal-traçada linha. Reaviva o vírus incurável presente nos tomos de todas estantes, a nos contaminar indelevelmente.

Por outros desses tortuosos caminhos do mercado (ou nem tanto), vendeu-se muito mais do primeiro do que do segundo. Aliás, encontrar o segundo é algo difícil, pelo menos de espera mais longa. Chego a temer até sua extinção...

Não que vendas signifiquem algo à vida, como o próprio Elogio nos mostra muito bem. Apenas entristece pensar em tanta oportunidade perdida, num mundo tão carente de bons estímulos, de paixão verdadeira, de desejo por algo elevado.

Incoerências por incoerências, vale lembrar um pequeno detalhe que pode ter escapado ao autor francês... Mesmo para falar de livros que não lemos, ele propõe que leiamos um livro!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Olhar

Engana-se quem pensa que a atualmente cotidiana chuva paulistana nada traz de bom...

Dentro do Metrô, aguardo pacientemente o torrencial e impaciente aguaceiro que despenca dos céus. Leio um pouco, penso um pouco e resolvo escrever.

Nada de iPad ou netbook. Caneta e papel nas mãos (ainda bem que sempre os levo na mala) e um dedo de motivação provocada pelo olhar de uma criança que passa.

Parado em frente às escadas de entrada, observo uma pequena chegando acompanhada da mãe, olhar assustado pelo tumulto climático. Pessoas pra lá e pra cá, um frenesi encharcado pelos desequilíbrios da mãe natureza.

Passa, me olha e me fita, como só uma alma infantil sabe fazê-lo. "O que fará aquele 'moço' com instrumentos arcaicos na mão, em meio a essa confusão?". "Decifrarei-te se não me devoras!", parece dizer através da doce inocência de suas pupilas.

Por que crescemos e perdemos essa espontaneidade no olhar? Como adquirimos a tal vergonha, ou regra social, da indelicadeza de encarar alguém, daquele jeito desinibido, olho no olho como se o mundo se congelasse no momento da conexão de horizontes?

Frequentemente me pego assim, distraído, absorto, a encarar algo ou alguém acontecendo. Minha atenção é desviada por algum motivo e, quando me dou conta, meu foco está direcionado, sem tempo ou espaço, apenas percepção.

Familiares e amigos brincam ou brigam muitas vezes com esse meu jeito, motivo pelo qual aprendei a me policiar. Porém, hoje novamente fui levado a refletir qual o problema.

Quais convenções tornam desagradável o ato de olhar diretamente, sem barreiras, sem pedir permissão, apenas fitar para aprender, entender e, de certa forma, passivamente participar. Absorver a realidade.

Desejamos ocular algo? Tentamos com isso proibir a leitura de nosso livro pessoal? Talvez não o sejamos tão abertos, apesar de acreditar que o devamos ser. De repente, em meio a nossas páginas, sobre alguma erro gráfico, frase mal escrita, linha mal contada.

Humanos que somos aprendemos a olhar. Deveríamos prezar e preservar a sabedoria pura e pueril de sorver a existência pelas janelas de nossa alma. Exercitar o dom de perceber atentamente, pontualmente, o mundo a transcorrrer em frente a nós.

Acaso mantivéssemos a prática, seria muito mais fácil enxergar o outro, enxergar no outro nossa semelhança, sua dignidade e nos respeitarmos. Humanos demasiadamente e irremediavelmente humanos.